QUANDO TAMANHO É DOCUMENTO: POR QUE
JOHNNY ESCREVE MAIS DO QUE JOÃO.
Universitários brasileiros e americanos foram
informados por seus professores de que, no prazo de duas semanas, deveriam escrever,
em sala de aula, durante uma hora e quarenta minutos, uma redação sobre o tema “valores
universitários”. Durante duas semanas os dois grupos de alunos ficaram expostos
ao mesmo conjunto de textos, entre os quais “Voltando Para Casa: O Novo
Menino Bolsista”, de Richard Rodriguez, “Pressões da Vida Universitária”,
William Zinzzer, “As Universidades Estão Formando Bárbaros Altamente
Qualificados”, de Steven Müller, e “Valores Como Padrão de Ação”, de
Richard R. Morril. Aos professores coube a tarefa de utilizar esses textos para
discussão em sala de aula, e aos alunos foi recomendado, não exigido, que os lessem
e estudassem. O objetivo era simples: criar condições para que os alunos
pudessem produzir a redação já tendo sido expostos à complexidade do tópico.
Cabe mencionar que esse trabalho de préescrita está baseado no argumento, hoje
enfaticamente sustentado pelos que trabalham com expressão escrita, de que o
ato de escrever é um complexo processo de descoberta, organização, comparação, desenvolvimento,
adequação e avaliação de ideias, e não fruto de inspiração momentânea de mentes
superdotadas. Em outras palavras, escrever bem tem muito a ver com estudo, dedicação,
paciência e, principalmente, suor. Como lembrava o crítico Samuel Johnson, “Um
homem sempre consegue escrever se souber se entregar de corpo e alma à tarefa”
ou, ainda, como reza a conhecida frase de Bernard Shaw, “escrever é 90%
perspiração e 10% inspiração”. Era, em grande parte, a perspiração que pretendíamos
resgatar com a estratégia adotada. Tínhamos e temos a convicção de que boas
redações raramente são produzidas por alunos que não leram, não discutiram e,
portanto, nada sabem do tema sobre o qual devem dissertar. Ao contrário, a
prática insiste em demonstrar que a inspiração só logra êxito quando
impulsionada por um intenso trabalho de pré-escrita. É importante lembrar que
os alunos e professores só foram informados da questão específica que deveria
ser discutida no dia e hora em que as redações foram escritas. De modo que,
embora alunos e professores soubessem que o tema da redação seria “valores universitários”,
a forma de abordagem que seria proposta permanecia em segredo. A intenção era,
por um lado, evitar que os professores, involuntariamente, direcionassem a
discussão para um aspecto específico do tema e, por outro, evitar que os
alunos, conhecendo antecipadamente a questão, se sentissem tentados a vir à
sala de aula com uma redação previamente elaborada. Para que o leitor tenha uma
melhor compreensão da relação imaginada entre o tema, as leituras e a questão
específica apresentamos, em anexo, as instruções que os alunos receberam no
momento de produzirem a redação. Cabe, antes de prosseguir, ressaltar que o
objetivo do estudo era descobrir o que pensavam e pensam os alunos sobre
questões como autoridade, professores, vida profissional, trabalho, lazer etc.
Não era nosso objetivo discutir aspectos retóricos ou linguísticos das redações,
mas identificar, através delas, os pressupostos que norteiam a discussão dos
estudantes sobre a vida universitária, no Brasil e nos Estados Unidos. Apesar
de muitas surpresas, obtivemos respostas mais ou menos esperadas para a maioria
de nossas perguntas. Essas perguntas e respostas foram discutidas em um estudo
mais extenso chamado “Valores Universitários – Uma Comparação Entre Redações
de Calouros Brasileiros e Norte- Americanos”, de 1989. Não cabe discuti-las
aqui, mas é inegável que contam muito sobre as diferenças ideológicas e
culturais que distinguem os alunos dos dois países - diferenças estas que, com certeza,
agem sobre os textos dos alunos de forma mais do que tangencial. O que de
imediato mais nos surpreendeu, entretanto, não foi a natureza e a direção
ideológica das discussões, mas, simplesmente, a gritante diferença no tamanho
das redações. Após estudar esses textos detalhadamente fomos levados a concluir
que, ao contrário do que normalmente se acredita, tamanho é documento.
Pelo menos até certo ponto, como já lembrava o sociólogo Claude Fischer (1976),
é inegável que quantidade se traduz em qualidade. O que os textos sugerem é que
reconhecer a complexidade do assunto em discussão, sustentar um argumento com
detalhes ilustrativos, desenvolver as ideias adequadamente, entre outros,
implica necessariamente escrever mais do que apenas algumas linhas. Ora, a
língua portuguesa é sabidamente mais redundante que a língua inglesa: tem mais
concordância nominal, concordância verbal, concordância de gênero, número etc.
Isso, somado à origem latina da maioria dos termos da língua portuguesa, com
número significativamente menor de monossílabos que a língua inglesa, faz esperar
que o volume médio de material produzido, sob condições similares, seja maior
em nossa língua. No entanto, no caso em questão, a diferença é marcante
exatamente no sentido contrário. Enquanto os estudantes norte-americanos
produziram, em uma hora e quarenta minutos, em média três páginas de texto por
aluno, os brasileiros produziram apenas uma. Nossa tendência, dada a nossa autoimagem
extremamente negativa enquanto povo, é atribuir essa diferença a uma menor dedicação
dos alunos brasileiros ao estudo do tópico durante as duas semanas que
antecederam ao dia da produção do texto. Essa não é uma explicação descartável
e, se verdadeira, confirmaria o mito de que o estudante americano estuda mais.
No entanto, não temos evidências para fazer uma afirmação categórica a esse
respeito, embora concordemos com a definição de “mito” do crítico Leslie Fidler,
qual seja a de que “o mito é uma mentira que diz a verdade”. O que
podemos afirmar, no entanto, é que a natureza das declarações dos textos é
muito diferente nos dois grupos, e isso talvez explique melhor porque nossos
estudantes, no caso em questão, produziram textos menores. Nossas observações
mostram que, invariavelmente, o discurso dos universitários americanos se caracteriza
por um equilíbrio entre relatos, inferências e juízos, enquanto que o discurso
dos brasileiros, via de regra, negligencia o relato e torna-se acentuadamente
inferencial e julgativo. Assim, por exemplo, temos a frase de um calouro
brasileiro que diz: “Os Centros Acadêmicos atuam de maneira ilusória perante
os administradores da universidade”. O aluno, evidentemente, deve ter feito
algumas observações para poder inferir que a ação dos Centros Acadêmicos é
ilusória. O leitor, no entanto, porque a frase está solta, sem qualquer sustentação
e com apenas tênues conexões com frases precedentes e subsequentes, não fica
conhecendo essa informação e, por isso mesmo, não tem como saber qual o
significado de uma ação ilusória. Até podemos imaginá-lo, mas a verdade é que o
autor não o produziu, e aí está uma das razões de seu texto ser curto e pouco
inteligível. O semantista S. I. Hayakawa foi muito feliz ao imaginar uma situação
bastante frequente nas cortes de justiça para ilustrar essa falta de relato
para sustentar inferências e juízos. Muitas testemunhas, por não perceberem a
diferença entre relatos, inferências e juízos, criam impasses às vezes difíceis
de superar. Hayakawa reproduz o seguinte diálogo ilustrativo: Testemunha:
Aquele sem-vergonha me passou a perna! Defesa: Protesto, Meritíssimo! Juiz:
Protesto aceito (As palavras da testemunha são retiradas dos registros).
Queira, por favor, dizer à corte exatamente o que aconteceu. Testemunha:
Ele me passou a perna, aquele rato mentiroso e sem-vergonha. Defesa:
Protesto, Meritíssimo! Juiz:
Protesto Aceito (As observações da testemunha são novamente excluídas dos
registros). Queira a testemunha ater-se aos fatos. Testemunha: Estes são fatos, meritíssimo. Ele, de fato, me passou a
perna. Por mais que se esforce, a testemunha, no caso, não consegue relatar os
acontecimentos que a levaram ao juízo que, agora, paralisa o seu pensamento. O
juízo construído sobre o agente das ações substituiu de tal forma os seus atos
que, na mente da testemunha, estes deixaram de existir e, portanto, sequer
conseguem ser comunicados. O pensamento parece aprisionado, parado e, como consequência,
pensar no agente se confunde com confirmar o juízo sobre o mesmo. Daí que o
discurso é repetitivo, sinonímico, carregado de adjetivos que, na verdade,
qualificam mais o sentimento da testemunha do que o agente e as ações que
executou. Da mesma forma que o discurso da testemunha, é a redação dos calouros
- uma roupa que parece não servir em corpo algum. Outro exemplo é a frase do
calouro brasileiro que diz: “Os representantes do povo dirigem o país como
melhor lhes convém”. Novamente, a frase é inferencial e julgativa. Inferencial
porque a declaração está baseada em algum ato do governo que fez o autor chegar
a essa conclusão; julgativa porque o autor expressa a sua atitude com relação
ao observado, ou seja, entende que o governo deveria agir de outro modo. Ora,
as inferências e juízos são perfeitamente aceitáveis quando devidamente
acompanhados de relatos que os sustentam. O exemplo aqui apresentado, no
entanto, é apenas um dos muitos exemplos de inferência e juízos montados no
vazio. Mesmo que aceitemos a verdade da inferência, não podemos fugir ao fato
de que lhe falta a sustentação, a ilustração, o desenvolvimento da ideia, o
relato. Dada essa ausência, o texto se torna obscuro, impreciso ou, utilizando
a terminologia desenvolvida pelo semantista S. I. Hayakawa, o texto aparenta
reafirmar os traços estilizados de um “mapa” e não a realidade de um “território”
ao qual o “mapa” deveria se referir. O tamanho reduzido do texto, Nos textos
dos estudantes americanos, por outro lado, o relato predomina e as inferências
e emissões de juízo são, em geral, criteriosamente acompanhadas de
exemplificações e descrições. Assim, por exemplo, um aluno escreve que “os
pais exercem enorme pressão sobre seus filhos, pois os sete mil dólares que
pagam por semestre à universidade fazem com que os pais se sintam com o direito
de exigir de seus filhos não só trabalho mas também sucesso”. A quantidade
de informações que recebemos nesse caso é notável: ficamos sabendo que a
universidade é paga, que os filhos dependem do auxílio financeiro dos pais, que
os pais fazem certos tipos de exigências e que o custo da educação durante um
semestre naquela escola é de sete mil dólares. Como podemos ver, o aluno saiu
do plano puramente inferencial e julgativo, enriquecendo o seu texto, primeiro,
com o relato de informação verificável para, em seguida, estabelecer uma
relação de causa e efeito entre a dependência econômica e as exigências dos
pais. Desse modo, a ideia ganha sustentação e o texto ganha tamanho. Está aí,
sem dúvida, também, uma das explicações para a maior clareza dos textos dos
universitários americanos e para o fato de os mesmos terem produzido três vezes
mais texto do que seus colegas brasileiros. As inferências e juízos tendem, no
caso brasileiro, a paralisar o pensamento, dando a impressão, já nas primeiras
frases, de que tudo foi dito e nada mais resta a dizer. Na verdade, entretanto,
o informativo, o pictórico, o comunicativo, o que poderia dar mais corpo ao
texto, o relato, permanecem engavetados na mente do autor. Hayakawa argumenta
que deveríamos suprimir de nossos textos expressões como “Jack nos pregou
uma mentira” em favor de algo como “Jack nos disse que não tinha as
chaves do carro. Entretanto, quando, minutos mais tarde, tirou o lenço do seu
bolso, um molho de chaves caiu ao chão ”. Do mesmo modo, um escritor
cuidadoso evitará escrever “vi três homens trabalhando”. Ele sabe que a
sua frase será bem mais eficaz se conseguir precisar o tipo de atividade, das
milhões possíveis, que os três homens estavam executando. Lavando automóveis?
Transformando chuchu em cereja? Cortando grama? Recolhendo o lixo das ruas?
Vendendo bilhetes de loteria? É fácil ver que o relato adiciona ao texto muito
mais do que simplesmente tamanho. Por situar-se nos primeiros degraus da escada
das abstrações, o relato cria distinções, acrescenta clareza à intenção do
autor, dá vividez ao texto, desnuda as palavras ocas e afasta, de vez, o
espectro de Babel. Nas redações que analisamos e que continuamos a estudar, o hábito
de julgar e de inferir sem analisar, discutir e descrever é marcantemente
brasileiro. A impressão que se tem é de que os textos já nascem gastos, que já
foram “escritos” pelo espírito da nação e que, agora, sob forma de clichês,
estão sendo transferidos para as páginas produzidas por nossos universitários.
Independentemente de preferências ideológicas e xenofobia à parte, não podemos
fechar os olhos à constatação de que falta aos nossos alunos o hábito de observar
mais, o hábito de relatar mais e de julgar e inferir menos. Falta-lhes, talvez,
simplesmente, a oportunidade para que possam desenvolver estas habilidades.
Como quase tudo na vida, também isto se aprende. Com a palavra os professores
de redação.